A idealização de um “eu” perfeito.
Sobre dormir para sempre, idealizar e aceitar os próprios defeitos. (Ou quase isso.)
No fundo do meu coração, eu sabia — talvez essa fosse a única coisa que meu coração sabia naquela época — que assim que eu tivesse dormido o suficiente ficaria bem. Eu me renovaria, renasceria. Seria uma pessoa totalmente nova.
Quem nunca pensou em dormir e acordar como uma versão melhorada de si mesmo? Eu já idealizei muitas vezes como seria deitar a cabeça no travesseiro à noite e abrir os olhos na manhã seguinte me sentindo uma pessoa totalmente diferente daquela que foi dormir sonhando com a versão perfeita de si mesma. É basicamente esse o tema do livro Meu ano de descanso e relaxamento de Ottessa Moshfegh. Só que de um jeito mais… egocêntrico e narcisístico.
A protagonista sem nome do livro tem um objetivo: dormir e acordar como a melhor versão de si mesma. Ela está angustiada com a vida. Detesta a própria vaidade e não quer mais saber de coisas fúteis como roupas de marca, depilação e academia. Ela está decidida a hibernar e voltar mudada. Só que para isso ela se entope de remédios, se alimenta esporadicamente com doses exorbitantes de café, cigarros e bebidas alcoólicas. Ela é loira, magra, linda de morrer, tem um trabalho que odeia numa galeria de artes renomada em Nova York, um relacionamento conturbado e humilhante com um homem mais velho problemático, uma melhor amiga que ela despreza, mas que é a única pessoa que se importa o bastante para aparecer em seu apartamento de vez em quando para garantir que está viva, uma doutora maluca que deveria ter a licença de psicóloga infantil caçada, traumas geracionais e uma considerável fortuna deixada pelos pais mortos.
Esse projeto de hibernação traz à tona uma outra versão da personagem que eu carinhosamente apelidei de “a sombra”. A sombra ganha consciência quando a protagonista toma um sonífero extremamente potente que a coloca para dormir por três dias. Só que, embora sua mente estivesse dormindo, o corpo não estava. Não fazemos ideia do que acontece nesses intervalos de tempo entre os momentos de inconsciência e vigília, só que a casa fica uma bagunça, a fatura do cartão de crédito vai às alturas, roupas novas aparecem no guarda-roupa e a personalidade dela saí de desanimada depressiva para eufórica e fútil.
Enquanto eu lia, me veio o pensamento: será que é tão maluca assim a ideia de dormir e acordar mudada? Fiquei pensando no que uma versão sonâmbula minha faria. Que decisões ela tomaria que mudariam o rumo da minha vida? Será que o fundo do poço é mesmo… o fundo do poço? Quantas vezes eu não idealizei uma versão de mim mesma mais ativa e empoderada? Um “eu” inalcançável?
Durante a pandemia, minha mãe disse algo parecido sobre “querer dormir e acordar só quando o Covid acabasse”. Na época, pareceu uma coisa tão absurda. Dormir não resolve nossos problemas. Mas agora penso: e se resolvesse? E se tudo que bastasse para a vida melhorar fosse um longo e revigorante sono? É claro que não vou me entupir de medicamentos, mas a ideia até que é tentadora. Um ano de descanso e relaxamento seria bom, exceto que não estaríamos vivendo, e o propósito de se estar vivo é viver.
A gente pode idealizar o quanto quiser: ser a filha perfeita, a amiga perfeita, a escritora perfeita, a aluna perfeita. Podemos nos analisar meticulosamente no espelho e apontar todos os defeitos que encontramos: a pálpebra desse olho é mais caída, um canino é mais alto que o outro, meu sorriso é torto, eu tenho essa mancha de espinha na bochecha. Ou até mesmo os defeitos mais pessoais, mais íntimos: ai, eu repito sempre as palavras nos meus textos, não sei articular bem minha oratória, eu leio muito devagar, eu penso demais no que vou dizer a acabo não dizendo nada… Enfim, é uma lista interminável.
A comparação então nem se fala. O ensaio daquela garota ficou bem melhor que o meu… ela anda tão bem de salto, quem dera eu também andasse… Todo tipo de baboseira se passa pela nossa cabeça vinte e quatro horas por dia. Até quando estamos dormindo, sonhamos com coisas impossíveis. Mundos idílicos. Utópicos. Sinistros. Lindos. Inconquistáveis. Fazemos promessas de “amanhã eu vou à academia”, “amanhã eu vou acordar bem cedo e colocar meus estudos em dia”, ou “na próxima vai ser diferente”, “semana que vem eu faço”. São os pactos diários que fazemos com nós mesmos. Assine na linha pontilhada e aproveite a neurose da autoperfeição para o resto da sua vida!
Vale a pena mesmo? Não, mas já virou uma rotina. Tem todo um embasamento social e científico nesse assunto. Eu poderia puxar sociólogos e filósofos para a questão. Pontuar: Segundo ciclano, (BELTRANO, 2020). Não vou fazer nada disso, porque esse post não é uma tese nem um artigo, é só um desabafo. Uma carta aberta. A página de abertura de um diário. Uma anotação na margem de um folhetim. Uma mensagem num post-it. Uma marca no mundo, uma idealização, um “eu escritora” perfeita ou quase isso. Como eu disse: já virou rotina. Estamos desesperados por uma afirmação. De todo mundo, acho que fiz meu ponto. A idealização é ruim, só que não vou parar de idealizar as coisas, mesmo sabendo o quanto me faz mal.
Queria ter uma reflexão interessante para deixar aqui. Algo como: a idealização vem de um lugar na minha infância e terminar com uma conclusão sobre como eu sou uma pessoa melhor e engrandecida depois de tudo, mas aí eu poderia todo o objetivo desse texto, que é: não existe versão perfeita. Não existe “amanhã eu faço”, “amanhã vai ser diferente”. Existe o hoje. Existe o “eu” sozinho sem adjetivo. Existe o presente. Não tem como dormir e acordar completamente mudada, senão estaríamos nos perdendo e… isso seria muito triste.
Apesar de tudo, gosto de quem sou e me prefiro acordada e consciente do que dormindo e alucinando sonâmbula delírios inalcançáveis. Eu prefiro arcar com meus atos nos intervalos entre a inconsciência e os momentos de vigília do que apodrecer na cama sonhando com um amanhã inconcebível. O que não quer dizer que eu não adoraria dormir e acordar revigorada intelectual e mentalmente. Seria bom ter uma versão minha por aí fazendo tudo que eu não gosto de fazer. Uma espécie de duplicata menos retraída. Mais descolada, mais confiante, mais engajada.
Mas aí não seria eu. Seria “a sombra”, “a outra”; e se essa versão perfeita se tornasse a preferida de todo mundo? E se um dia eu nunca mais voltasse a ser “eu”? E se… Aí que está: e se eu me perdesse? E se não encontrasse o caminho de volta para mim mesma? Eu quero a minha versão de agora, a que é intragável de vez em quando, que reclama e idealiza, que é alcançável. Essa que sou “eu”.
Vou fechar parafraseando Clarice Lispector:
Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso — nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
Com a frase da Clarice no final você me pegou!!! Amei o texto e a reflexão. Quando li, também me peguei pensando "e se..." Porque dormir e acordar uma pessoa melhorada é ALGO. Mas, tanto livro quanto na vida real, isso não acontece, e tudo que é idealizado não tem base nenhuma no mundo material, só que é mais fácil falar do que, no caso, entender isso... (Dito isso, já tô esperando o próximo texto!!!!)